Atualize-se 09/10/2020 - 03:10:39
A balada de Adam Henry
Artigo de Thais Rocha, servidora do TJAL, sobre obra inglesa que discute os limites entre Direito e moral

A balada de Adam Henry
Thais da Rocha Ribeiro, analista judiciária do Tribunal de Justiça 
do Estado de Alagoas e membro do Clube do Livro: Direito e Literatura


No romance The Children Act, do escritor britânico Ian McEwan, originalmente publicado na Inglaterra em 2014 e no mesmo ano no Brasil, com o título A Balada de Adam Henry, somos convidados a refletir sobre questões como a relação entre direito e moral, direito e religião, diferenças culturais, casamento, amor e tantas outras que fazem parte da sociedade contemporânea.

Fiona Maye, protagonista do romance, é Juíza do Tribunal Superior da Corte Inglesa, especializada em direito de família, cinquenta e nove anos, racional, erudita, pianista de música clássica, elogiada nos círculos dos magistrados pelo modo conciso em que relatava as disputas judiciais, sendo descrita pelo lorde que presidia o judiciário como “imparcialidade divina, inteligência diabólica”.

O romance descreve de forma realista o cotidiano da juíza no Tribunal Superior da Corte Inglesa, reescrevendo fatos reais ocorridos no Poder Judiciário inglês, alguns rotineiros e outros nos quais são tratados os dilemas morais, bem como as mudanças de paradigmas que ocorreram no direito da criança e do adolescente ao longo dos anos.

Em uma noite chuvosa de domingo, encontramos Fiona Maye, deitada em uma chaise longue e, no chão, ao alcance de suas mãos, o rascunho de uma sentença. Estava trêmula depois de uma discussão com seu marido, Jack, um professor de História antiga, que depois de trinta e cinco anos de casamento, anuncia que antes de morrer gostaria de viver uma grande paixão com uma jovem especialista em estatística e sugere um casamento aberto, afinal, ele ainda a amava, mas afirmava que os dois estavam vivendo como irmãos.

No transcorrer do texto, a juíza, que “em sua própria opinião, a cada ano se aproximava um pouco mais de uma exatidão que alguns poderiam qualificar como pedante”, vai mostrando seus arrependimentos, culpas, fragilidades, escolhas, a abdicação de seu desejo de ser mãe em favor de sua carreira e como suas decisões afetavam sua vida particular e como a crise no seu casamento iria interferir em suas decisões. E nesse instante, com a crescente judicialização dos dilemas morais, passamos a nos questionar até que ponto o magistrado consegue separar seus próprios dilemas morais e suas próprias convicções da sua tarefa como julgador.

Voltando seus pensamentos para o momento em que se distanciara de Jack, Fiona relaciona com o caso dos irmãos siameses, Matthew e Mark, que compartilhavam um único órgão, a bexiga, e o coração de Matthew era grande, mas com pouca capacidade de se contrair, sendo sustentado pelo de Mark que não resistiria ao esforço e se uma providência não fosse tomada, ambos morreriam. O cérebro de Matthew era malformado e dificilmente viveria mais do que seis meses. Caso fossem separados, Mark tinha potencial para ser uma criança saudável e um hospital de Londres solicitava a permissão para separar os gêmeos, o que levaria a morte de Matthew. Os pais eram católicos devotos e recusavam-se a “aprovar o assassinato por convicção religiosa. Deus havia lhes dado a vida, só ele podia acabar com ela”.

Em sua decisão, a magistrada, citando Lord Wald, faz uma importante observação, separando o direito da moral: “Este Tribunal lida com matérias de Justiça, não de moral, e nossa tarefa consistiu em descobrir, assim como é nosso dever aplicar, os princípios legais relevantes na situação posta diante de nós - uma situação única” e fundamenta na “doutrina da necessidade” que em circunstâncias limitadas era possível violar a lei criminal com a finalidade de evitar um mal maior e que o propósito da cirurgia não era matar Matthew e sim salvar Mark, “sua sentença era elegante e correta, assim julgavam as pessoas do ramo”. Após o julgamento, Fiona ficou infeliz, não conseguia dormir, algo a abalou profundamente e se tornou enjoadiça em matéria de corpos, sentindo repugnância pelo próprio corpo e o de Jack.

Depois de uma tempestade de sentimentos, na iminência do fim de seu casamento, a magistrada, que naquele domingo estava de plantão, é comunicada que precisa decidir com a máxima urgência, por se tratar de uma questão de vida ou morte, sobre um pedido de autorização formulado pelo hospital Edith Cavell, para realizar uma transfusão de sangue de emergência num paciente com câncer. Um rapaz de dezessete anos cujos pais se recusavam a dar consentimento porque eram seguidores da Testemunhas de Jeová, religião que, entre seus preceitos, proíbe tratamentos médicos com transfusão de sangue. Naquela mesma noite, Jack abandona o lar.

Adam Henry, Testemunha de Jeová, filho único de Kevin e Naomi, sofria de uma forma rara de leucemia. O jovem de dezessete anos e nove meses encontrava-se internado no hospital e necessitava de uma transfusão de sangue para que pudesse sobreviver e com o apoio de seus pais e de sua congregação estava disposto a morrer em nome de uma fé genuína.

O ponto crucial é que Adam estava para completar dezoito anos em menos de três meses e a liberdade de escolha do tratamento médico constitui um direito fundamental. E na Inglaterra, um médico que trata o paciente sem seu consentimento comete o crime de agressão. E nos termos da Lei de Família, o consentimento de uma pessoa de dezesseis anos seria tão eficaz como se ele já houvesse alcançado a maioridade.

Na audiência são apresentados os argumentos dos pais de Adam e seus advogados, dos advogados do hospital e do adolescente, além do hematologista e da assistente social. Diante das especificidades do caso, a magistrada resolve suspender a sessão e decide ouvir Adam para lhe explicar pessoalmente que a sua decisão levará em conta seus melhores interesses, “ele também precisa saber que não está nas mãos de uma burocracia impessoal”. Interessante observar, paradoxalmente, o direito como instrumento de transformação social, com as leis de proteção à criança e ao adolescente, humanizadas ou desumanizadas pela burocracia.  

O encontro entre Fiona e Adam, um encontro entre a razão e uma fé genuína de um rapaz extremamente inteligente, falante, que escrevia poesias e estava aprendendo de forma autodidata a tocar violino, é um dos momentos mais singulares do romance. Diante de suas diferentes formas de ver e compreender o mundo se ligam através da literatura e da arte. 

A juíza retorna ao Tribunal para proferir a sentença e decide em favor do hospital, com base na Lei da Criança de 1989, que garante a primazia do bem-estar da criança e do adolescente que deve constituir a principal preocupação da corte, ressaltou, ainda, que Adam conhecia muito pouco fora do terreno das ideias religiosas e filosóficas e seu ponto de vista sobre o mundo era em uma única direção.  Nas palavras do autor, “durante toda a infância ele esteve exposto sem interrupção a uma visão do mundo monocromática e poderosa, de cujo condicionamento não poderia escapar. Não promoverá seu bem-estar sofrer uma morte desnecessária e agonizante, para assim se transformar num mártir de sua fé”. Nessa mesma noite, Jack, arrependido, volta para a casa.

Adam, já recuperado da doença, mas cercado por dúvidas e incertezas a respeito de sua fé, entrou em conflito com seus pais e com sua crença ao perceber que na realidade eles haviam ficado felizes com a decisão da juíza, uma vez que a transfusão de sangue foi realizada, salvando a sua vida. Como isso não havia sido culpa deles, e sim de um sistema sem fé, suas almas também estariam salvas. Com o rompimento de tudo o que ele acreditava, buscando um novo sentido para sua vida e acreditando que Fiona pudesse lhe indicar um novo caminho, passou a mandar cartas para ela. Sem respostas, a perseguiu de Londres até Newcastle, cidade onde Fiona, em sua adolescência, passava alguns dias na companhia dos tios e primas. Lá ela guardava em suas recordações os momentos mais aventureiros e acreditava que naquela cidade poderia ser mais autêntica e verdadeira. No inesperado encontro, o jovem pede para morar com ela. Fiona “num impulso poderoso e indesculpável” o beijou e depois o mandou embora.

Passados alguns meses, a magistrada toma conhecimento de que a doença de Adam tinha voltado. O rapaz, agora maior de idade, estava livre para exercer sua autonomia e, em nome de sua crença, negou-se a receber a transfusão de sangue. 

A Balada de Adam Henry nos apresenta uma narrativa contemporânea sobre o papel da magistratura e a bela e difícil tarefa de julgar.

 


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