Toda tristeza será castigada
Gustavo Tenório é servidor do Tribunal de Justiça de
Alagoas (TJAL) e membro do Clube do Livro: Direito e Literatura
Sempre se teme o que não é familiar, assim pronuncia o personagem Beatty, o capitão do corpo de bombeiros de Fahrenheit 451, obra prima do estadunidense Ray Bradbury, em meio à névoa de fumo proveniente de seu cachimbo. Essa sentença, em sua objetividade, parece ser o núcleo do universo distópico criado por Bradbury.
Em uma realidade em que os bombeiros queimam livros ao invés de apagar incêndios, vê-se, logo de cara, a periculosidade que o artefato representa. Numa análise mais rígida no que concerne à ideia da queima de livros, nota-se que o livro não apresenta algo inovador na literatura e nem traz novidade em termos históricos a não ser a nova função para os bombeiros, claro. A queima de livros não é novidade para a humanidade. A Inquisição, os Governos Nazi-Fascistas do século XX e Stálin na URSS, a título de exemplo registre-se que não apenas estes , censuraram livros e os destinaram ao fogo, num ritual com pompa de espetáculo institucional de terror. Ademais, em algumas situações, também o autor das ideias e dos livros censurados era incinerado. (Até Dom Quixote, o cavaleiro da triste figura, teve a sua biblioteca destinada ao fogo, pois a acusaram de ser a fonte de sua suposta loucura).
Fahrenheit 451 é comumente enquadrada como uma obra de ficção científica. A verdade é que Ray Bradbury criou algo tão vasto que chama-lo de ficção científica mostra-se insuficiente. A história, de fato, trata-se de uma distopia, ou seja, de um lugar anormal, com uma carga negativa em sua realidade. Assim é a estrutura social em que se passa a narrativa: uma sociedade de controle das mentes e dos corpos dos indivíduos, em que livros são queimados e quem os possui são liquidados; uma sociedade de excesso de positividade, em que o que importa é ser feliz, ainda que isso se faça com a ingestão incessante de comprimidos contendo bombas de satisfação; uma sociedade de hiperconectividade, em que não há espaço para o tédio ou para apenas estar só consigo mesmo.
O que é mais surpreendente para não dizer assustador é que o livro parece encontrar um reflexo cada vez mais próximo com o desenho da realidade atual. A ideia de uma literatura distópica busca justamente refletir os medos de seu tempo, porém, potencializando-os. Fahrenheit 451 foi publicado pela primeira vez em 1953, num período subsequente à Segunda Guerra Mundial e dos horrores dos regimes Nazi-Fascistas, especialmente às cenas de queimas públicas de livros proibidos pelo governo de Hitler. Contexto histórico que favoreceu a boa recepção pelo público e pela crítica, na década de 1950. O inquietante é que, em pleno ano de 2020, a obra ganhou novo fôlego.
Ler o livro e encontrar semelhanças com a contemporaneidade serve como um alerta. Em um dos memoráveis diálogos entre o capitão Beatty e o bombeiro Montag, personagem central da obra, o primeiro discorre que nossa civilização é tão vasta que não podemos permitir que nossas minorias sejam transtornadas e agitadas. Pergunte a si mesmo: o que queremos neste país, acima de tudo? As pessoas querem ser felizes, não é certo? Não foi o que você ouviu durante toda a vida? Eu quero ser feliz, é o que diz todo mundo. Bem, elas não são? Não cuidamos para que sempre estejam em movimento, sempre se divertindo? É para isso que vivemos, não acha? Para o prazer, a excitação? E você tem de admitir que nossa cultura fornece as duas coisas em profusão. A realidade de Fahrenheit 451 é tão despojada de negatividades que até os velórios foram eliminados.
No final das contas, o que está sendo incinerado pelos bombeiros é a própria humanidade. E o que é mais genial na grande obra de Ray Bradbury é a ambiguidade do fogo: ao mesmo tempo que extermina os livros, é também o símbolo do conhecimento. Afinal de contas, foi a partir do domínio do fogo que a humanidade conseguiu alçar o seu voo evolutivo. E, por falar em voo, não é à toa que o livro termina com uma alusão à lenda da Fênix: parece que estivemos fazendo e refazendo inúmeras vezes a mesma coisa, só que com uma vantagem que a Fênix nunca teve. Nós sabemos a estupidez que acabamos de cometer. Conhecemos todas as coisas estúpidas que estivemos fazendo nos últimos mil anos. Desde que não nos esqueçamos disso, que sempre tenhamos algo para nos lembrar disso, algum dia deixaremos de construir as malditas piras funerárias e de saltar dentro delas, reflete o personagem Granger, enquanto prepara um naco de bacon na frigideira, no fogo acendido às margens de um rio.
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